* Simone Aparecida de Sousa Capperucci
Estamos em um contexto social de turbulência, resultado de processos que constituíram um país baseado em hierarquias sociais, excludentes, que geraram desigualdades e nos conduziram à involução. Resultado de tudo isso são mais de quinhentos anos de oportunidades para poucos e exploração de muitos.
A escola como instituição social encontra-se nessa sociedade, perdida entre o que faz e o que deveria ser feito, diante de indivíduos que deveriam ser constituídos como cidadãos, mas são tratados como “clientela”; a escola torna-se, assim, muitas vezes depositária de menores que infringem a regras sociais, não conseguindo ser o suporte e/ou alicerce necessário para uma sociedade mais democrática e digna.
Qual a função, o papel social de cada um de nós? Como construir dignidade em meio a tantas injustiças? Construir cidadania num situação de total desigualdade de direitos? As escolas públicas não têm conseguido observar e desempenhar sua função, não agora, mas desde sempre, uma vez que as escolas públicas brasileiras, desde sua constituição não conseguem atender às necessidades e anseios das classes trabalhadoras. Essa terminologia trabalhadora deixa claro que, não estamos nos referindo àqueles que já se reservaram ao “direito” de não atuarem positivamente na sociedade, dentro do mercado de trabalho, mas refere-se àqueles que têm como objetivo serem pessoas do bem, atuando como cidadãos.
No cotidiano das escolas públicas, na maioria das vezes vemos crianças, adolescentes, se perdendo em meio a valores que não foram trabalhados, imoralizados por uma sociedade que tem se despido da moral; vítimas ou algozes? Quando nos deparamos com um menor infrator, essa é a dúvida que paira, são produto dessa sociedade que os rotula e marginaliza ou causadores dessa sociedade?
Eu decidi que meus alunos não são bandidos, mesmo sendo, muitas vezes considerados marginais, pois são vítimas de uma sociedade que não os oportuniza nada, desde a concepção, muitos desses foram renegados, rotulados, castigados por não serem ou estarem no espaço e tempo no qual a sociedade gostaria, mas quais seriam esses tempos e esses espaços?
Ver um menor sendo conduzido pela polícia e o escarro no rosto de cada um de nós que se considera um cidadão ou uma pessoa de bem, implica que estamos falhando como seres humanos que deveriam cuidar, pelo menos, de sua própria espécie. Alguém pode dizer que não se sente responsável, que faz sua parte, o que só confirma a visão egoísta que temos tido em relação aos outros e ao mundo.
Quem vivencia um pouco da realidade de muitos desses menores pode constatar o abandono social no qual se encontram, que a prática do delito é um grito por socorro, mas o cerne reside em quem poderá os socorrer? A família, esfacelada por falsos valores, espaço no qual não existe diálogo, nem a prática do cuidar? À escola, instituição, sem rumo, conduzida por políticas públicas, muitas vezes ineficientes, com interesses partidários? Aos órgãos deliberadores de medidas protetivas, que não protegem ninguém?
Tanto os aparelhos repressores, quanto os ideológicos não conseguem mais esconder um problema de séculos. Há tempos ouvia uma canção que, entre outras coisas, dizia: “Menino pobrezinho, da América Latina, nana neném, nana neném, que o amanhã, já vem.” O amanhã chegou, o menino não viu melhoras, por isso, muitos hoje se afundam nas drogas para esquecer que têm uma vida miserável e injusta, outros creem que a vida humana é tão sem valor que não importa matar ou morrer.
Encontro adolescentes de olhos opacos, sem nenhum brilho, sem nenhum sonho, e me questiono sobre o que esperar, não deles, mas sobre o que a sociedade pode fazer por eles. Encontro menores de doze, treze anos que só conhecem as gírias da criminalidade e jargões policiais: “tô liberado?” “tá limpo aí, tá limpo aí”. Esses mesmos não têm lembranças que todo ser humano deve ter o direito de ter da infância, as brincadeiras, os sonhos; perderam a esperança no momento em que foram arrebentados no mundo, não possuem registros dessa data, não celebram aniversário, não conseguem olhar horas no relógio, nem saberem o que é ser cuidado, protegido; essas crianças nunca receberam nada da família, tampouco da sociedade. Vítimas são caracterizadas como bandidos, excluídos recebem o rótulo de perturbadores.
O que poderíamos dizer de um adolescente de doze anos que, mesmo frequentando a escola há sete anos, não consegue ler, não reconhece todos os números, nem sabe olhar horas? Menino abandonado por uma sociedade, que prefere fechar os olhos para o outro, não enxergando-o como pessoa, se humano. O que imaginar quando um adolescente de quatorze anos diz que com as drogas ele consegue conviver com a fome, o frio, a indiferença? Menino esquecido, viciado por um sistema que prefere o capital a pessoa humana. O que fazer perante meninos transformados em homens, desde sempre, em busca da sobrevivência, da necessidade de engolir o outro, uma vez que o seu nunca lhe foi oferecido.
A escola não é a única responsável, mas também o é, por isso a inquietação de educadores que acreditam que, não ter, hoje significa não ser; por isso tamanha marginalidade em grupos de adolescentes, em busca de coisas, acreditando que obter essas, a qualquer preço, os dará identidade como pessoas.
Pobres crianças abandonadas à marginalização. Infeliz sociedade que não percebe o erro em marginalizar àqueles que seriam seu futuro. O que será dessa raça, chamada homem. Tristes crianças e adolescentes, das quais foi tirado o direito de serem; serem crianças, serem inocentes, serem adolescentes, serem contestadores, mas sobretudo de serem pessoas criadas em relações humanas saudáveis.
Peço perdão por não ser capaz de proporcioná-los um espaço melhor, uma sociedade saudável, uma vida digna, o brilho nos olhos e a esperança em um amanhã melhor, acorda, menino pobrezinho, da América Latina, o camburão já vem…
* Simone Aparecida de Sousa Capperucci, Formada em Língua Portuguesa e suas literaturas pelo Centro Universitário de Caratinga (UNEC) em 1997, pós-graduada em Língua Portuguesa em 1998 pelo UNEC, especialização em Literatura e Linguística aplicada em 2005. É professora de Língua Portuguesa nas séries finais do ensino fundamental e médio da rede pública de ensino do Estado de Minas Gerais, desde 1996, mestre em Educação e Linguagem pelo UNEC em 2010. Professora do Centro Universitário de Caratinga nos cursos de Pedagogia, Letras.
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