* Nelson de Sena Filho
Tristes trópicos, esses que cultuam e se comovem pelos
“inutilidades” e não sabem quem foi esse João.
Outubro de 1999. Uma notícia circulava pela mídia (claro que sem o estardalhaço da morte do ídolo sertanejo): Morria João Cabral de Melo Neto. O país ficou sensivelmente mais pobre e mais triste. Certamente ele será um dos poucos poetas que será lembrado daqui a centenas de anos. Felizmente. Porque hoje cultura virou sinônimo de mercado (vale tudo por dinheiro: pagode, esoterismo, anjos…). João fazia uma poesia sem concessões. Não seguia o caminho fácil da “inspiração sem talento”, no qual qualquer coisa vale em nome do desejo, dos sonhos, da emoção. A poesia desse João era feita com rigor, com talento, com desprezo pela emoção fácil e pela anedota (segundo Carlos Heitor Cony). Esse João, segundo Marcelo Coelho, simplesmente, “despoetizou a poesia”. Caetano Veloso disse em “Outro Retrato”: “minha música vem da poesia de um poeta João/Que não gosta de música”. João era assim, antilírico, racional. Não é sem motivos que sua poesia lembra (ética e artisticamente) a prosa de um outro João (Guimarães Rosa). Ambos fazem uma escrita sem concessões. Crua, nua. Como a vida.
Esse genial João não participava dos alaridos da mídia. Por isso morreu sem alarde e sem choro. Como sua poesia, preferia, segundo Arthur Nestrovski, a solidão dos versos e da prosa a aridez da mídia. Pouco antes de morrer, já cego e deprimido, perguntaram-lhe de que sentia mais falta: “de ler”, foi a resposta. João recusava sempre interpretações transcendentais sobre sua poesia. Para ele o retirante de “Morte e Vida Severina”, por exemplo, era somente um retirante. Não era um “arquétipo” de nada, não um “sem-terra, não um ser-interior”. Não tinha simbolismo, era uma linguagem-objeto por excelência. Por isso sua pouca aceitação, nesses tempos de “Paulos Coelhos”, de anjos cabalísticos e de neurolinguistas com suas inteligências emocionais.
Nosso João fazia uma poesia que não era fruto de inspiração, nem de estados emocionais (como o namorado que se torna poeta ou o adolescente que tem surtos de criatividade). Antes, ela é fruto de um trabalho racional, árduo, que implica fazer e refazer, ler e reler. Isto não significa não falar do amor, por exemplo, mas de falar dele racionalmente. É, nesse sentido, o nosso anti-Pessoa.
Mas nosso país não soube merecê-lo. Sua morte não foi sentida como, por exemplo, a do ídolo sertanejo. O motivo é simples. João era precioso demais para ser popular. Um país que chora por aquele não merece mesmo este. Mas, resta um consolo. Passados os anos, ninguém se lembrará das duplas de pagode, nem das loiras que rebolam… as futuras gerações reconhecerão certamente a genialidade desse João. Pois ele, certamente está entre nossos três maiores poetas contemporâneos, ao lado de Drummond e de Bandeira.
Outro consolo. Para nós, e não somos poucos, a poesia desse João está muito acima do trash que se transformou nossa cultura. Nós, seus admiradores, não deixaremos nunca de evocá-lo contra os mensageiros do apocalipse da irracionalidade. E mais: somente na morte de alguém do porte de João se pode evocar outro grande da poesia como W. H. Auden (traduzido pelo também poeta Nelson Ascher) para traduzir um mínimo do que foi essa perda.
Funeral Blues
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.
Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto um laço no pescoço
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.
É hora de apagar estrelas -são molestas,
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.
- H. Auden
Tradução de NELSON ASCHER
Prof. Nelson de Sena Filho
Professor do Centro Universitário de Caratinga – UNEC